Mário
Braz, de 81 anos: no próximo dia 28,
a Comunidade dos Arturos, em Contagem, na Grande BH,
recebe o título de Patrimônio Imaterial de Minas Gerais
Em Minas Gerais, há um estudo para transformar o ato de benzer em bem imaterial
Luciane Evans - Saúde Plena/Jornal Estado de Minas, 13/04/2014
Sobre um banco de concreto, das 8h às 17h30,
Mário Braz, de 81 anos, se senta à espera das cerca de 70 pessoas que o
procuram todos os dias. Nos pés, um chinelo velho. Nas mãos, a fé e o mistério
que não revela. “Tenho aqui os santos para todas as dores. Parece um molho de
chaves, mas não é. É um segredo”, diz, com toda a simplicidade que lhe cabe.
Seu Mário, como é conhecido, não se formou em medicina, mas sabe de cor as
orações para cada mal do corpo e da alma. “Sou benzedeiro. É um dom que Deus
nos dá.” Há 39 anos, ele benze quem o procura com as imagens de santo no
chaveiro e a folha de arruda. Tem sabedoria de doutor. Não tem pressa. Sabe que
cada palavra é divina e tem seu propósito. “Tem coisas, minha filha, que não
são para os médicos. Só a fé pode curar.” Sobre o sucesso que faz, sorri e diz
que a busca pela benzeção está voltando ao que já foi um dia. “Nunca vai
acabar”, decreta.
Seu Mário tem razão. E está nas mãos dele o
primeiro passo para a preservação da tradição em Minas Gerais. No
próximo dia 28, a
Comunidade dos Arturos, em Contagem, na Grande BH, recebe o título de
Patrimônio Imaterial de Minas Gerais, registro dado pelo Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha). Seu Mário mora lá
desde os 10 anos e é o benzedeiro mais conhecido da região, atraindo até mesmo
gente de outros lugares do Brasil. Só não benze aos sábados e domingos, e nem à
noite. “Se aparecer alguém, até benzo. Não se pode recusar. Mas não gosto. Fins
de semana Deus fez para o descanso. Benzer à noite não é bom, não é uma linha
boa. Pode ser perigoso”, alerta.
A comunidade dos Arturos, onde vive seu Mário,
será a primeira a receber o título do Iepha. Até hoje, como bem imaterial, o
instituto tem na lista o modo de fazer queijo da cidade do Serro, na Região
Central, e a festa de Nossa Senhora da Chapada do Norte dos Homens de Preto, no
Jequitinhonha. “De lugar, esse será o primeiro. Trata-se de um reconhecimento
da expressão da comunidade como um todo. Lá, há culinária, Festa do Rosário e a
benzeção, que é um ponto forte deles”, comenta o gerente de Patrimônio
Imaterial do Iepha/MG, Luís Gustavo Molinaria Mundim.
Mas isso é só o começo. Desde o ano passado, o
instituto está debruçado sobre o projeto de transformar o ato de benzer em
Minas em patrimônio imaterial. “Fazíamos um inventário de proteção do Rio São
Francisco quando identificamos várias benzedeiras e várias formas de benzer.
Percebemos a necessidade de algo maior para o ofício”, diz Luís Gustavo.
A intenção, segundo ele, é fazer um mapeamento
para conhecer quantas são as pessoas que praticam a benzeção, quem são elas e
os elementos invocados para a prática. “Queremos conhecer também como isso está
sendo passado. O registro é baseado em um patrimônio vivo, ou seja, o benzer
tem que estar ocorrendo. Com o registro, vamos identificar quais os principais
problemas que essas pessoas enfrentam, e manter projetos para que a prática se
mantenha.”
Desafio. Essa curiosidade que está nas mãos do Iepha é
também a de muitos. Para se ter uma ideia, no dia 16 de março o Bem Viver
publicou matéria sobre a inveja e suas consequências. Entre um dos
entrevistados, a benzedeira Maria José Lima comentou sobre a proteção por meio
da benzeção. Logo após a reportagem ser publicada, dezenas de pessoas ligaram
para a redação em busca do contato da benzedeira e muitos se queixaram de não
achar mais o ofício em
Belo Horizonte. Houve quem apostou que ele tinha chegado ao
fim. Um dos leitores sugeriu: “O Estado de Minas podia procurar esses anjos
para nós”.
O Bem Viver topou o desafio e foi atrás
das pessoas das mãos abençoadas. Elas não desapareceram. Fácil, realmente não
é. Porém, os benzedeiros e benzedeiras estão vivos e sendo procurados cada vez
mais. “Eles têm algo incrível. São reconhecidos nas comunidades onde vivem,
acolhem quem os procura e não cobram pelo que fazem. São pessoas boas, a
maioria é de baixa renda, e não quer status nem fama. É algo milenar. Há o
efeito da contemporaneidade, claro. Mas essas pessoas não vão desaparecer”,
aponta o filósofo e professor de ciências da religião da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Stephen Simim. Estudioso do
assunto, ele dá o caminho para o reencontro com essa bênção: “Se você treinar o
seu olhar, vai redescobrir essas mulheres e homens que têm o dom de benzer”.
É preciso ter fé para buscar a cura, dizem especialistas sobre os
benzedeiros
Crucifixo, plantas, imagens de santos e orações
inventadas por quem benze são usados no ritual
Aos 91
anos, Dona Aurora Ferreira dos Santos cria as próprias orações. Ela é procurada
por dezenas de pessoas interessadas em sua bênção
Quebranto, cobreiro, mau-olhado, espinhela caída,
vento-virado, sentido… Esses nomes, longe do universo científico, fazem parte
de um mundo mágico, povoado de rezas, crenças, simpatias e benzeções. São
diagnósticos dos benzedeiros em Minas Gerais. São ditos por eles, sem enganos. E
para cada um desses males, físicos ou espirituais, há orações e formas de
benzer. Há quem use crucifixo, plantas, imagens de santos e até a água para o
rito. A prática, em pleno século 21, não mudou muito, mas vem sendo adaptada. E
hoje há até quem benza por telefone. Mas será que os rituais têm mesmo poder de
cura? Para quem tem nas mãos e no olhar o dom, a resposta é uma só: é preciso
ter fé.
Há 12
anos, o filósofo Stephen Simim, professor de ciências da religião da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), fez uma dissertação de
mestrado sobre as benzedeiras no estado e, desde então, se interessa pelo
assunto. “Muitas são analfabetas, vivem em casas muito simples. A maioria é de
mulheres. Acredito que isso está ligado à relação do feminino com a natureza.
Lembro-me de uma dizer que da terra vem a doença e da terra vem a cura.” Diante
de tudo que viu e ouviu, ele não duvida da cura e lembra-se de casos curiosos.
“Todas as identificações de vento-virado, espinhela caída, mau-olhado e outros
problemas estão associadas a algum mal. Diante do rito, percebi a mudança no
estado da criança. Pude acompanhar de perto: as pessoas chegavam de uma forma e
saíam de outra”, comenta.
Ele acredita que nesse encontro ocorra algo
importante, que pode ser um milagre ou não. “Às vezes, nada mais é que a
dificuldade de alguém que não conseguia um lugar para ser acolhido. As
benzedeiras, antes de tudo, acolhem. Elas conversam, ouvem, tocam e interagem
com o problema de quem as procura. Vi pessoas saindo bem diferentes do que
entraram e aquelas que, ao fim de um ciclo de benzeções, mudavam. Não tenho uma
definição para isso, mas acredito que a prática traga algo novo, senão, não
estaria até hoje”, defende.
O segredo nada mais é que a fé, conforme resume
Maria da Conceição de Souza, de 61 anos. Benzedeira no Bairro Nazaré, na Região
Nordeste de Belo Horizonte, ela conta que aprendeu o ofício com uma senhora que
benzia os filhos de sua patroa. Com o conhecimento adquirido, optou por benzer
somente crianças, pois os “adultos chegam muito carregados”. Para ela, a
benzeção é o caminho para aquilo que a medicina não cura. “Mas as mães têm que
ter fé, senão, os meninos não melhoram.” Quando o Bem Viver esteve em sua casa,
Michele Avelino, de 24 anos, já a aguardava. “Quando pequena cheguei aqui pois
estava há dois dias sem comer. Quando ela me benzeu, comi até arroz com feijão.
Hoje, trago o meu filho Lucas, de 1 ano.”
Quando
chegou Miguel, de 3 anos, Maria deu o diagnóstico. “Está sentido.” Segundo ela,
isso acontece quando a criança está indisposta, sem comer e triste, o que pode
ser mau-olhado. “No caso de vento-virado, ela tem um dos braços ou uma das
pernas mais curta que a outra. Isso pode ser um susto que tomou. Nesses casos,
é bom benzer três vezes. Se a mãe está nervosa ou teve briga em casa isso
reflete na criança. Quando os pequenos forem elogiados, é bom dizer ‘Benza
Deus’, para protegê-los”, aconselha. Maria benze com folhas de arruda,
manjericão, reza Pai Nosso, Ave Maria e Salve Rainha.
Ela
não acredita no fim da prática, mas confessa não ter alguém para quem passar o
seu conhecimento, já que seus filhos não querem tamanha responsabilidade.
Segundo Stephen, há duas formas de eternizar a prática. A primeira delas é a
transmissão por gerações. “A outra é a experiência mística. A pessoa não
aprendeu com ninguém e passou a benzer por meio de uma vivência.” Ele lembra
outros elementos que envolvem a prática, como o uso das plantas medicinais.
ORAÇÕES Outro
destaque do pesquisador são as orações. Muitas benzedeiras criam suas rezas,
que ninguém sabe de onde vieram, nem elas (veja na página 4). É o caso de
Aurora Ferreira dos Santos, de 91 anos. Famosa em Belo Horizonte,
Aurora cria suas orações, que já salvaram muitos. Analfabeta, ela diz que
benzer é retirar o mal das pessoas e uma das dicas que dá a todos é relacionada
a esses males abstratos. Ela diz para ficarmos atentos àquelas mariposas que
entram dentro de nossas casas. “Tem que retirar e mandar para longe. A bruxa é
sinal de que há alguém não está lhe desejando o bem”, ensina.
Mesmo
com a idade avançada, todos os dias ela é procurada por dezenas de pessoas,
inclusive por quem mora fora do país. E, nesses casos, ela usa o telefone para
benzer. Na sua casa, no Bairro Floramar, na Região Norte da capital, já foram
de pedreiros a juízes em busca de suas mãos e olhos abençoados. Ela tem no seu
altar imagens de Santa Bárbara, Cosme Damião e São Sebastião. Como bem observou
Stephen, é comum não se benzer à noite, somente na luz do dia. Aurora tem esse
hábito e outros também. “Uma vez, na Sexta-Feira da Paixão, uma mulher me
procurou. Quando a benzi, saíram dela três espíritos. Nunca mais benzi nesta
data”, recorda. Toda noite, depois de benzer as dezenas de pessoas, ela pega um
terço e reza por cada um que lhe procurou. Nunca cobrou pelo serviço e diz que
a recompensa está na saúde que Deus lhe dá. “Enquanto Ele me der licença, vou
trabalhar”, afirma.
Não há uma resposta científica que possa explicar o que é ser
benzedeiro
Para muitos,
uma força superior rege as energias da pessoa para o bem
Espírita,
dona Nerci da Conceição é benzedeira há 30 anos e usa em suas benzeções ramos
verdes, folhas de arruda e de guiné ao lado de um crucifixo
Uma sabedoria popular que ninguém sabe de onde
veio nem para onde vai. Seria um dom ou uma experiência de vida? Não há
respostas exatas. O certo é que, segundo os benzedeiros, para benzer não é
preciso muito: basta ter o coração aberto e fazer o bem. Muitos, hoje em dia,
não são católicos. Adaptaram suas crenças à prática. Assim, quem chega à casa
desses anjos, independentemente da religião, percebe que a grande maioria não
está em busca de holofotes e benze por acreditar em uma força superior.
Dinheiro? “Dá-se de graça o que de graça recebeu”, ensina Nerci da Conceição,
de 68 anos, benzedeira na capital há 30 anos. Para a geração que chega, eles
aconselham a ter boa vontade, o que pode significar largar um almoço para
atender, sem pressa ou preguiça, alguém que precisa ser benzido.
Espírita,
Nerci conta que seu dom veio da necessidade. Ela não encontrava benzedeiras na
cidade para seus filhos e, assim, começou a benzer. No Bairro Aparecida, na
Região Noroeste, ela é bem conhecida e usa a natureza em suas rezas. Há em sua
casa ramos verdes, arruda e guiné – plantas que usa para benzer junto do
crucifixo. “Antes do rito, gosto de ouvir as pessoas. Tenho até a oração para
as doenças desconhecidas. Receito o uso de plantas também. Em casos de
problemas de pele, é bom usar pomada recomendada pelo médico e um pouco de
enxofre”, diz. Ela benze até mesmo os animais e acredita que há pessoas que
atraem o mal, “por isso, benzer é tão importante. Afasta os maus espíritos e
abre caminhos”.
Na linha da umbanda kardecista, a benzedeira
Maria Aparecida da Silva, de 64, conta que benze desde os 12 anos e não sabe
como aprendeu. Um dos dias mais marcantes para ela foi quando chegou em sua
casa uma moça pedindo benzeção. “Não sabia o que tinha, nunca a tinha visto na
vida. Veio o meu guia espiritual, que às vezes fala comigo quando preciso, e me
pediu para benzê-la na luz. Acendi uma vela”, conta.
Míriam se diz médium e, durante a entrevista,
surpreendeu a reportagem muitas vezes. Segundo ela, é bom benzer com água, para
limpar as coisas ruins. “Cada pessoa tem um tipo de vibração”, comenta. Por
acreditar nisso, ela pede cuidado com os abraços. “Um abraço mal dado é pior do
que uma facada. Quando alguém lhe abraçar, feche os olhos. Aí você barra a
energia do outro. Será um espelho para quem abraça você. Existe pior reflexo
que o espelho?”, questiona.
Ela faz um alerta também para esse período da
quaresma. “É uma época em que espíritos vagam muito facilmente. É preciso
cuidado. A benzeção protege você”, comenta. Porém, mesmo defendendo essa
proteção, Míriam diz que não se pode ser benzido por qualquer um. “Tenho medo
de passar meu conhecimento para alguém. Pode-se benzer tanto para o bem quanto
para o mal. O coração dos outros é terra que ninguém morre. Por isso, é preciso
cuidado”, avisa. Quando a reportagem pediu a Míriam que fosse fotografada para a
matéria, ela informou que as entidades que lhe acompanham não permitiram e
pediram a ela que não falasse mais. Respeitamos.
De
acordo com o filósofo Stephen Simim, as adaptações da forma de benzer são
muitas, e uma delas está na assimilação de outros elementos e religiões. “Hoje,
há no meio evangélico, por exemplo, aquela pessoa que ora pelas outras. É uma
irmã de fé muito forte”, exemplifica, lembrando de práticas atuais esotéricas,
que muito têm a ver com as benzeções. “Muitas coisas estão surgindo, mas
ninguém está inventando. Por isso, não tenho medo de que a prática se perca.
Pode haver uma ressignificância.”
Senso de responsabilidade
Medo,
Mário Braz, de 81 anos, também não tem. Há 39 benzendo, ele diz que aprendeu a
prática com a irmã benzedeira. “Lembro que zombava tanto dela, e ela um dia me
pediu para benzê-la, pois estava com dor de cabeça. Ela sarou na hora e
viu que tinha o dom. Não parei mais”, recorda. Com tanto sucesso, recebendo
cerca de 70 pessoas por dia, ele conta que há dias em que está almoçando e
chega uma criança para benzer. “Aí tenho que largar o prato. Por isso, digo que
não se pode ter preguiça nem má vontade.”
Mário benze as doenças e também os documentos. Uma das perguntas que faz para
quem pede sua benzeção é se a pessoa está desempregada e pede a carteira de motorista. Então, faz suas rezas. Até
moça solteira ganha uma oração para se casar. E não é à toa que as
pessoas o procuram todos os dias na comunidade dos Arturos, em Contagem. “Minha
mulher está benzendo. Faz escondido de mim, por preconceito”, diverte-se Mário,
que diz ter ensinado à mulher a “costurar” coluna. “Quando se está com uma dor
na coluna, é bom pegar uma agulha e costurar um novelo. Sara que é uma beleza,
só não pode esquecer a oração”, diz.
Antes de começar a benzeção do dia, das 8h às 17h30, Mário se protege. “É para
deixar meu corpo fechado. Funciona. Tenho uma saúde de ferro”, afirma. Quem o conhece diz que foram poucas as vezes em
que ele deixou de benzer, como no dia da morte da irmã, em que ficou três dias de luto. Como muitas pessoas vão à sua
procura, Mário conta que até os médicos da região já o recomendam. “Por isso,
digo que as pessoas estão voltando a nos procurar. Antigamente, qualquer coisa
que acontecia, ia-se em busca dos doutores. Hoje, eles que estão mandando seus
pacientes para as mãos e olhos dos benzedeiros”, diverte-se.
ORAÇÕES
Oração de Santa Catarina
“Minha Santa Catarina, digna que foste, aquela senhora que passou pela porta de
Abraão. De dia e de noite, ache seus inimigos tão bravos para mim como leões.
Com suas palavras abrandai o coração de meus inimigos. Se tiverem faca para mim
há de enrolar como um novelo de linha, será cortada pela corrente de Santa
Catarina. Se tiverem arma de fogo para mim será cortada pela corrente de Santa
Catarina. Ninguém me enxergará, eu viro em pau e empedra na frente dos meus
inimigos. Meus inimigos nunca vão me enxergar para fazeromauamim, está
acorrentado pela corrente de Santa Catarina. Há de correr quando me virem, como
o judeu correu da cruz. Assim seja. Amém, Jesus.”
Oração criada pela benzedeira Aurora Ferreira dos Santos, de 91
anos.
“Cruz de Cristo na minha testa, palavra divina na minha boca, hóstia consagrada
na minha garganta, menino de Jesus no
meu peito. Aleluia, Aleluia, Aleluia. Custódia me proteja”
Oração que Mário Braz faz antes
de benzer. É proteção contra os males, e Custódia, que ele cita, é uma antiga
benzedeira da região.