quinta-feira, 27 de março de 2014

Reza, remédio e simpatia - artigo de frei Francisco van der Poel (Frei Chico)


Na medicina popular, a cura acontece através de um ritual. A benzedeira, o raizeiro, o ogã das plantas (cultos afro) e o pajé (culturas indígenas) procuram curar a pessoa como um todo e não curar só o corpo de um doente. Neste processo, vida e religião se mostram inseparáveis.

Os curadores mencionados sabem perfeitamente que o tripé de remédios, rezas e simpatias reúne elementos distintos que, sem contradição entre si, combatem a doença e suas causas, segundo as culturas representadas.

Semelhante ao tripé da cura, o povo usa (1) arma, (2) simpatia e (3)reza para defender-se dos inimigos. O agricultor usa (1) a técnica (boa semente, época certa, cova da fundura certa), (2) lança mão de simpatias e (3) pede as bênçãos de Deus e bom tempo. Quem quer casar, (1) tem amor, (2) planta a faca na bananeira e (3) rezam a Santo Antônio, São Gonçalo ou São João pra ajudar. Em todos estes momentos, vida e religião permanecem integradas.

A cultura popular é uma realidade dinâmica e não pode ser entendida apenas como uma prática tradicional, fixada no passado. Em benefício do doente, o curador popular procura ser coerente quando integra valores novos.

A medicina oficial e a popular são diferentes, desde o lugar do tratamento, os nomes dados aos membros do corpo, especialmente a interpretação da doença e, consequentemente, o processo de cura. Enquanto o povo usa ‘meizinha’ e o médico dá ‘remédio’, uma mulher do povo disse no consultório: Vamos ver, seu doutor, se sua meizinha é remédio p’ra minhas macacôa.[1]  

A medicina popular conhece grande variedade de remédios. Além das plantas medicinais, utiliza banha de vários animais, gema de ovo, óleo de tanajura, pedra do bucho, creolina, leite materno, terra, riscado de cinza, picumã e mais uma infinidade de coisas. Abre-se um grande campo para pesquisas. No entanto, rezas, os remédios e, especialmente, as simpatias da medicina popular dificilmente são tolerados por padres, médicos ou psicólogos. Nesse angu de caroço, é bom observar que, quando os serviços oficiais de saúde funcionam bem, eles enriquecem e transformam as práticas e saberes medicinais populares, e vice-versa.

Como a religião e a cura dos doentes funcionam juntos na cultura popular?
Um remédio, que resolve problemas graves, é chamado um "santo remédio". Diz o povo: Deus querendo, água do pote é remédio. Em Manhuaçu (MG, 2000), R.H. de Barros, ao tomar algum medicamento, rezou: Em louvor das três pessoas da Santíssima Trindade, e as cinco chagas do Nosso Senhor Jesus Cristo, em ação de graças. Muitas benzedeiras, após a oração, aconselham ao doente o uso de plantas medicinais. Várias rezas mencionam remédios. Segundo as bênçãos de curar cobreiro, fogo selvagem e queimadura, Jesus ensina a curar com água da fonte e raminho do monte. Na oração contra impingem, Nossa Senhora ensina a curar com guspe da boca e cinza do lar, com os poder de Deus e da Virgem Maria. Da mesma forma, a oração contra engasgo vem acompanhada de um murro nas costas ou uma colher de farinha de mandioca. Sem obter alívio com os remédios do médico, a rezadeira L.T. Ramalho disse: Rezei, pedi a Deus e Nossa Senhora para me dar um tino para saber o que ia fazer para não tomar esses comprimidos. Achei a alfazema e pus no garrafão (de pinga). Tomo um pouquinho com farinha de milho. (Araçuaí MG, 1980) Observamos que muitas plantas medicinais têm nomes religiosos: capim-santo, pau-santo, cardo-santo, fava-de-santo-inácio, erva-de-nossa-senhora, erva-de-são-joão, melão-de-são-caetano, erva-de-são-lourenço, raiz-do-espírito-santo. Também é muito interessante o costume de plantar na sexta-feira santa o fumo e o alho que servirão de remédio. O gesto popular ensina: Jesus, morreu na cruz não só para nos salvar dos pecados. Ele salva os doentes. Em tratar-se do conceito de “salvação”, a religião do povo é menos moralista que a religiosidade de muitos padres.

As simpatias constituem um assunto delicado que merece uma atenção especial:

Na lingua grega, a palavra ‘simpatia’ significa ‘sentir juntos o mesmo’. Disso vem a definição: “Relacionamento espontâneo e feliz entre pessoas, sem explicação do porquê.” Por isso, surgem expressões como: Seu santo bateu com o meu. O oposto se dá quando os anjos ou as sortes não combinam.

Outra definição de ‘simpatia’ é:
“Ação de teor não racional executada para curar doenças e consertar todo tipo de males. A simpatia é de larga aplicação no combate a doenças e problemas de difícil solução.” No Ceará, é chamada simbolia.[2] Nestas simpatias são usados: pé de coelho; chocalho de cascavel; figa; cavalo-marinho; dente de onça; sineta do altar, vários tipos de pó e muitas outras coisas. Na região amazônica, para conquistar um grande amor, a pessoa compra um ‘atrativo’.

A expressão ‘Fazer uma simpatia’ refere-se a ações benéficas sem explicação racional a favor de amores, economias, estudos, defesa do corpo, saúde de humanos e animais. Seu uso é antiquíssimo. Alguns cientistas encontraram o uso de simpatias na antiga Mesopotâmia.
A ação não racional (mágica, não lógica) baseia-se na intuição que analogias podem produzir efeitos favoráveis. E isso já era praticado na alquimia medieval. Paracelsus (1493-1541) foi um médico e filósofo suíço que julgava importante a "antiga arte de fazer uma simpatia com a doença" e, para isso, elaborou um sistema lógico a respeito. Ele disse: "Os semelhantes curam-se com semelhantes".

Na história da medicina no Brasil: Em seu “Erário Mineral” (1735), o cirurgião Luís Gomes Ferreyra, ao ensinar o uso de remédios da Terra e do Reino, defende claramente o uso de pós de simpatia e da pedra cordial encontrada no bucho de alguns veados.[3]

Em "The golden Bough" (2007), o antropólogo inglês James G. Frazer escreve sobre a ‘magia simpática’: "Quando analizamos os princípios básicos da magia, podemos resumi-los em dois pontos essenciais: (1) o semelhante produz o semelhante, ou seja, a consequência se parece com a causa; e, (2) coisas que uma vez tiveram contato entre si, continuam se influenciando depois da quebra do contato físico."[4]             

Ainda hoje, várias simpatias, em uso entre nós, explicam-se por analogias; p.ex.: a uma criança que gagueja dão de beber água na campainha do altar que se comunica bem; em São Paulo e Minas Gerais, quando um menino caminha com dificuldade, esfregam-lhe nas pernas a bolinha de ovinhos amarelinhos encontrada na teia das aranhas ou lavam-lhe as pernas com o cozimento de um pezinho de veado, pois aranhas e veados têm pernas ligeiras. Depois de plantar uma semente de melancia, alguém deve sentar-se um pouco na cova ‘para dar frutas grandes’; analogia fácil de compreender. Para escapar de inimigos e assaltos, é bom carregar um pedacinho de couro do lobo-guará, animal muito esperto e desconfiado.

Outras tantas simpatias são praticadas sem analogias aparentes. Tudo isso é perfeitamento comparável com o uso de amuletos e talismãs. O cidadão que só acredita naquilo que tem explicação, manda estas coisas para o reino da superstição. Mas, ... não ter explicação é próprio da simpatia. O funcionar das simpatias supõe algum relacionamento íntimo entre homens, animais, plantas, planetas. A intuição desta profunda união não leva em conta as leis de causa-fim.

Assim, p.ex., para secar o leite materno, a mulher põe no pescoço um cordão de talos de mamona. É bom contra mau-olhado, um raminho de arruda atrás da orelha; uma beleza. A mãe diz: Menino, joga seu dente de leite em cima do telhado e volte para cá sem olhar para trás; outro dente vai nascer. Em certos casos, a pessoa não pode voltar ao lugar onde a simpatia foi feita. Têm simpatias que a pessoa beneficiada não pode saber. Certas simpatias exigem que os objetos empregados (panela, faca) sejam ‘virgens’. Também a bolsinha dos patuás é feita de pano nunca usado. Além disso, observamos que algumas simpatias expulsam o mal: tirar cobras do pasto e lagartas na horta, mandar a visita embora, transferir a doença para uma árvore; e outras correspondem a desejos: pescar um peixe bom, arrumar dinheiro, conseguir um casamento feliz, galinha botar ovo. Em todo caso, é notável encontrar (1) a pratica racional, (2) a simpatia sem lógica e (3) o ritual religioso, executados simultânea- e conscientemente, pelo ser humano em diversas culturas.

E, para não dizer que não falei dos santos protetores, eis mais uma analogia: Enquanto a medicina científica e tecnicamente avançada continua de difícil acesso para muitos, entre as alternativas encontra-se o curador que peleja com o sofrimento alheio que ele já conhece por experiência própria. O “curador ferido”, arquétipo estudado pelo psiquiatra Carlos Gustavo Jung (1975-1961), corresponde também a santos patronos como Santa Luzia que perdeu os olhos e agora protege os olhos do povo; São Lourenço que morreu queimado e cura queimaduras; São Sebastião morreu flechado e cura doenças contagiosas (a flecha simboliza a peste, na Idade Média). Há outros santos assim.

Na medicina popular, rezas, remédios e simpatias misturam-se tanto que não há como separá-las. A pedra bezoar, encontrada no estômago da vaca, é usada como remédio e como simpatia. Muitos afirmam que as simpatias são feitas com fé. É comum a simpatia feita em forma de cruz. Bentinhos e patuás, frequentemente contêm a oração escrita juntamente com alguma simpatia. A chave do sacrário cura sapinho e a medalha de São Dimas protege a casa contra assalto. ‘Medidas’, como a fita do Senhor do Bonfim ou a fita da medida do corpo de um doente, podem servir como simpatias.

Simpatias são usadas especialmente para resolver casos complicados como: soluço, verrugas, hemorroidas, bronquite e coqueluche; também para ajudar a criança com dificuldade de caminhar, para favorecer o parto difícil, expulsar a placenta, emagrecer, crescer cabelo, prevenir-se contra mau-olhado. Há simpatias para curar animais.

Conclusão: Tentar levar a sério o tripé sagrado da medicina popular de rezas, remédios e simpatias, é um desafio que nos obriga a pensar o mundo a partir do outro que talvez seja pobre, não saiba ler, mas certamente recebeu uma educação diferente, viveu a experiência religiosa através de costumes a nós desconhecidos.

Este povo tem fé em Deus, procura ser coerente no pensar e participar na sua comunidade portadora de cultura própria. Não podemos descartar logo tudo que não caiba nas nossas teorias. Provavelmente podemos sim aprender com eles e eles conosco. Esta busca de tentar compreender o outro não significa apelar para a ignorância. Eles e nós temos muito em comum. Vivemos na mesma era e na mesma nação. Somos criaturas e filhos do mesmo Deus.

Francisco van der Poel (Frei Chico) é autor do livro "Dicionário da Religiosidade Popular: Cultura e Religião no Brasil"




[1] SÃO PAULO, Fernando. Linguagem médica popular no Brasil. Rio de Janeiro: Barretto & Cia, 1936. v.1. p. 18.
[2] BARROS, Sousa de. Arte, folclore, subdesenvolvimento. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. nota 41. p. 115.
[3] FERREYRA, Luís Gomes. Erário Mineral. (Lisboa, 1735) Belo Horizonte: Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, 1997 (ed. fac-similada) p.96.
[4] FRAZER, James George. De gouden tak: over mythen, magie e religie. Amsterdam: Olympus, 2007. p.31.

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