quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Arquivo de notícias: Inclusão dos Povos Ciganos pelo Estado



"É importante que o Estado comece a incorporar grupos ciganos como parte do Brasil", afirma o  procurador Luciano Mariz Maia, responsável por uma audiência pública no Senado nesta quarta-feira (12), em Brasília, com a presença de integrantes da comunidade cigana e autoridades. 

Entre os principais temas a serem debatidos, estão seu direito ao acesso à saúde, à assistência e previdência social, ao reconhecimento e valorização dos modos de ser e viver e a luta contra a discriminação.  Inclusive, inexiste no país um censo populacional específico sobre o grupo.

O pedido para a realização da audiência foi encaminhado por Maia, que é subprocurador-geral da República e Procurador Federal dos Direitos do Cidadão/ Adjunto para a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, presidida pelo senador Paulo Paim (PT).

"O diferencial dessa audiência em relação às anteriores é que ela está baseada em um referencial teórico mais consistente e mais objetivo, a partir das reflexões do antropólogo Frans Moonen, que estudou durante 20 anos a cultura cigana e também com base em estudos acadêmicos. Dessa forma, a presença dos interlocutores do Estado  podem ajudar na viabilização das questões mais urgentes para a população cigana", disse o procurador ao UOL. 

A reunião é tida como uma grande conquista para os ciganos e tem como objetivo dar visibilidade e inserir na agenda política programas voltados a comunidades e organizações representativas dos ciganos  no Brasil.

"Acreditamos que essa iniciativa da PFDC [Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos] em conjunto com a Comissão de direitos Humanos no Senado seja capaz de dar um direcionamento mais efetivo a essas questões - e são várias, disse Elisa Costa, cigana do clã Kalderash e presidente da AMSK (Associação Internacional Maylê Sara Kali), entidade presente em vários países e que difunde a cultura cigana. " A AMSK acredita no diálogo como forma de instrumento para o reconhecimento da cidadania", declarou.

Sobre estudos populacionais, a professora Silvany Euclênio, secretária de Políticas para Comunidades Tradicionais da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial),  afirma que a Secretaria, em parceria com o Programa Interagencial de Gênero Raça e Etnia / ONU, contratou uma consultoria para a elaboração de um mapeamento preliminar das principais rotas de itinerância cigana no Brasil, a localização dos grupos sedentários, bem como a estimativa da população.

"Este produto nos dá condições para traçar um plano para o mapeamento mais detalhado.  Acreditamos que em 2013 já teremos condições de desenvolver um instrumento, envolvendo diversos ministérios, para coordenar um conjunto de ações que atendam às demandas prioritárias", afirma Euclênio.

Lembrando que, em 2009, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) fez um breve levantamento da situação de municípios, nos quais há presença de acampamentos ciganos.  Segundo o estudo, cerca de 290 municípios reconheceram a existência de acampamentos ciganos em seu território.

Também foram convidados para participar do encontro autoridades e representantes da Seppir, o IBGE, os Ministérios da Educação, Saúde, Justiça, Previdência e Assistência Social, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Ministério da Cultura, além da Secretaria de Direitos Humanos.      

Falta de acesso à saúde  
Euclênio afirma que diversas medidas voltadas ao povo estão em andamento no âmbito do governo federal. "A Seppir coordenou reuniões interministeriais em 2012, tratando da pauta cigana. Como exemplo, podemos citar o Ministério da Saúde, que publicou portaria 940, de 28 de abril de 2011, no artigo 23, parágrafo 01, que libera os povos ciganos da apresentação de comprovante de endereço para acessar o SUS, e tem realizado capacitação dos agentes da saúde para o atendimento a esta população", disse.

Para Nicolas Ramanush, presidente da ONG Embaixada Cigana do Brasil, embora uma das poucas conquistas do povo cigano tenha ocorrido no governo Lula, como a criação, em 2006, do Dia Nacional do Cigano, celebrado em 24 de maio, as medidas como a política diferenciada em sistema de saúde para os ciganos "apenas funcionam no papel", na prática a situação é mais complexa.

"Há dois anos, a minha mulher e eu conhecemos um idoso diabético que teve atendimento recusado no posto de saúde, pois não tinha documento. Ele vivia em acampamento, seus antepassados sempre viveram dessa forma, sem certidão de nascimento e/ou carteira de identidade, por exemplo", disse. Em 2012, Ramanush conquistou o Prêmio Betinho Atitude Cidadã, por causa dos trabalhos realizados junto a comunidades carentes de origem cigana.

Ramanush explicou que, segundo as tradições ciganas, após o cumprimento do período de luto, os parentes evitam falar sobre a pessoa falecida. Todos os pertences do idoso foram queimados juntamente com a sua barraca. "Para quem não é cigano, pode parecer estranho essa prática, mas tudo isso demonstra que o povo cigano não se prende ao passado, apenas segue em frente com foco no presente", disse.

De acordo com o Ministério da Saúde, os postos de saúde são obrigados a atender todos os ciganos, sem que haja a necessidade de apresentar quaisquer documentos. A assessoria de imprensa do órgão informou que se houver a negativa de atendimento por falta de documento, é necessário que os pacientes entrem em contato com as ouvidorias do SUS, através do telefone 136 ou por meio do portal do Ministério da Saúde.

Grupo historicamente invisibilizado
Apesar do esforço, Euclênio concorda com a falta de políticas públicas efetivas para os ciganos. "Sem dúvida as demandas dos povos de cultura cigana constituem uma pauta relativamente recente  para o Estado brasileiro. Os ciganos fazem parte daqueles segmentos populacionais historicamente invisibilizados, como ocorreu com outros povos e comunidades tradicionais no Brasil. Muitas vezes, esses grupos populacionais optaram pelo distanciamento das estruturas formais de poder, numa estratégia de manutenção da sua identidade étnica", disse.

Ramanush, por sua vez, critica a "ideia de integrar" os ciganos ao contexto social brasileiro. "Hoje se fala em integração da população cigana, mas a maioria já está integrada na sociedade exercendo diversas profissões. Nós até já tivemos um presidente cigano, o Juscelino Kubitschek (1956-1961). O que precisamos é de medidas para ajudar os ciganos que vivem à margem da sociedade", declarou.  

Origem e preconceito     
Não existem dados concretos a cerca da origem exata do grupo, mas estudos indicam que os primeiros ciganos vieram da Índia, especialmente por causa do romani (idioma praticado pela maioria dos ciganos) que traz semelhanças com o hindi (língua derivada do sânscrito).  

Na Europa e nos Estados Unidos a palavra  "gipsy"- cigano-, é evitada por estudiosos por apresentar caráter pejorativo, sendo adotado o termo "roma".  Basicamente os ciganos se dividem em três grupos denominados Rom, Sinti e Calon.   

O preconceito em relação ao grupo é registrado desde a chegada dos primeiros ciganos ao continente europeu no século 15.  Os hábitos do povo nômade, as vestimentas e o idioma logo causaram desconfiança nos Estados europeus com o reforço dos primeiros estigmas.   

O antropólogo Frans Moonen menciona no livro "Anticiganismo e Políticas Ciganas na Europa e no Brasil"  que "a ignorância se manifesta principalmente nos estereótipos, nas imagens anticiganas. O preconceito, e no final a discriminação, costumam aparecer depois. Combater o anticiganismo exige, portanto, combater os estereótipos, os preconceitos e as discriminações anticiganas".

Ramanush afirma que na Europa os ciganos sofrem mais preconceito que no Brasil. "Aqui no país o reforço do estereótipo é muito mais intenso do que propriamente a discriminação. Cria-se o preconceito de que cigano é ladrão de criança. Sem mencionar também a generalização até por conta da mídia. Nas manchetes lemos: cigano mata, cigano rouba. Muitas vezes o tal suspeito nem é de origem cigana", disse. 

De acordo com a Eisa Costa da AMSK, por causa do preconceito, diversos profissionais  liberais oriundos de famílias ciganas  apenas falam da origem dentro da família ou a pessoas próximas.  Ela ainda afirma que há aqueles que "omitem a origem cigana em situações de risco, quando não podem mais ser identificadas pelas roupas tradicionais e etc... Assim como a existência de ciganos que assumem a origem sem quaisquer receios". 

Mulher cigana    
Em relação à condição da mulher cigana dentro do grupo, Elisa Costa, da AMSK, afirma que alguns grupos ciganos mantêm o conservadorismo calcado em tradições seculares. Muitas famílias cultivam o patriarcalismo, evidenciando o papel de submissão da mulher.  Em geral, segundo o costume, a cigana quando se casa passa a pertencer à família do marido e deve obediência também aos sogros. "É comum ver um homem se casando com gadji [não cigana], mas quando são mulheres que se relacionam com não ciganos, a coisa muda e tudo fica mais difícil," disse. Entretanto, nos dias de hoje, Elisa afirma que muitas mulheres "já estão no comando de famílias ciganas". Muitas delas conseguiram seguir na universidade e,  inclusive, no exercício de profissões diversas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...