quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Arquivo de Notícias: A sagração de Arthur Bispo do Rosário na Bienal Internacional de Artes de São Paulo

A obra do esquizofrênico Bispo do Rosário tornou-se o modelo da arte brasileira de vanguarda do século XX. Até que ponto a loucura colabora para o surgimento do gênio – e vice-versa?

Luís Antônio Giron, com Tônia Machado



A produção de um indigente negro e nordestino diagnosticado como esquizofrênico que nem se considerava artista, mas sim o preposto de Deus na Terra, será a principal atração, entre 7 de setembro e 9 de dezembro, da 30ª Bienal Internacional de Artes de São Paulo. Estarão expostas em várias formas e técnicas, como assemblages, objetos, estandartes e roupas, 348 obras de Arthur Bispo do Rosario (1909-1989). Ele trabalhou ao longo de 50 anos não num ateliê, mas numa cela-forte imunda, dentro de um hospício em condições precárias.

Não se trata da maior exposição já feita da obra de Bispo, mas é uma das mais consistentes na seleção. Ela marca o ápice de uma das carreiras póstumas mais bem-sucedidas no circuito das artes do Brasil. Em 1995, Bispo destacou-se no Pavilhão Brasileiro da Bienal de Veneza. Em 2003, o museu Jeu de Paume, em Paris, exibiu centenas de obras dele. Até 28 de outubro, o Victoria & Albert Museum de Londres abrigará 80 obras de Bispo. Ele se tornou uma figura glorificada, tema de dezenas de teses de doutorado e até personagem de filme de ficção. O longa-metragem O senhor do labirinto, de Geraldo Motta, com estreia prevista para o fim do ano, apresenta-o como um gênio. Críticos e artistas se apropriam de um trabalho que há 30 anos era considerado fruto dos delírios de um anormal. Seu caso estimula perguntas que geram outras perguntas. Que tipo de arte é esta? Como ela pode figurar no panteão dos inovadores do século XX? Quais as fronteiras da arte, da loucura e da razão? Em que momento o impulso criativo do artista dá lugar ao delírio? Até que ponto a loucura abre as comportas da criatividade?

 Para obter as respostas, é preciso conhecer o homem antes da obra. Nascido na cidade de Japaratuba, em Sergipe, Arthur entrou para a Marinha, foi pugilista e empregado de uma família rica no bairro carioca de Botafogo. Em 23 de dezembro de 1938, avisou o patrão que seria carregado em cortejo por anjos até a igreja. Em seguida, invadiu o Mosteiro de São Bento para declarar aos padres que fora enviado por Cristo para liderar a Igreja Católica na travessia até o Apocalipse. Os anjos não o ajudaram quando os soldados o escoltaram até o Hospital Nacional dos Alienados, onde foi internado como “esquizofrênico-paranoico”. Era a véspera de Natal, data que ele assinalava como seu nascimento místico. “Um dia eu simplesmente apareci”, disse Bispo ao psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart no documentário O prisioneiro da passagem (1982). Em janeiro de 1939, ele foi levado à Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Etiquetado como paciente número 01662, viveu a maior parte de seu tempo no pavilhão 11, destinado aos doentes “perigosos”. Forte, tornou-se o “xerife” do local, encarregado da faxina e da segurança. Bispo surrava e imobilizava os loucos mais furiosos, facilitando o trabalho dos funcionários.

Impondo-se pelo vigor físico, e também pela habilidade para os trabalhos manuais, ele resistiu a todo tipo de violência e mutilação, habituais no sistema psiquiátrico vigente até os anos 1980, baseado no confinamento, na lobotomia e no eletrochoque. Bispo rechaçou também as propostas para tomar parte de oficinas de terapia ocupacional, técnica que a psicanalista Nise da Silveira (1905-1999), discípula de Carl Jung, adotou nos anos 1950 para tratar pacientes como ele. Avesso a novidades psicanalíticas, ele preferia a solidão. Elaborou e se cercou de peças que representavam o mundo em miniatura, construídas a partir de objetos que conseguia no hospício, como garrafas, embalagens, recortes e cobertores. Extraía a linha que usava desfiando o uniforme azul usado pelos internos. Sua missão, dizia, era exibir as peças no Juízo Final. Costurou para si uma mortalha luxuosa, com que se apresentaria a Deus no fim dos tempos, como mandatário da humanidade. Hoje, a mortalha, chamada de Manto da apresentação, é considerada pelos críticos sua peça capital. Bispo recusava-se a ficar longe de seus objetos. “As miniaturas permitem minha preservação e de todos os trabalhos que existem”, disse a Hugo Denizart. Em 1982, sua obra finalmente foi levada a uma mostra, mas ele não saiu da cela. Isso não impediu que muitos artistas começassem a cultuá-lo. “Não sou artista”, disse. “Sou orientado para ser uma coisa desta maneira.”

Quando a morte forçou-o a abrir mão de suas criaturas, iniciou-se a revisão de sua arte, que culmina agora na Bienal. Suas obras foram transportadas do cubículo onde ficou por meio século para o prédio da administração da Colônia Juliano Moreira, onde funciona o museu, cujo nome, Nise da Silveira, foi mudado para Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Ali, as 804 peças de sua autoria, tombadas em 1992, são mantidas em condição precária. Só passam por restauração quando saem para exposições.

Graças a curadores internacionais, a obra de Bispo mudou de estatuto. Passou de curiosidade a exemplo. Na realidade, trata-se de um conjunto de peças cuja genialidade faz esquecer que surgiram de uma mente lunática. De acordo com os críticos, sua obra pouco ou nada mais tem a ver com a doença mental. Ao contrário, é a prova da resistência da arte à loucura. Representa como poucos as preocupações, dilemas e proezas da arte atual. “Depois de Hélio Oiticica e Lygia Clark, a instalação passou a ser vista como uma obra de arte”, afirma o crítico Nelson Aguilar. “Isso possibilitou a compreensão da obra de Bispo como forma de arte.” Aguilar diz que, ao conhecer a obra de Bispo, teve um choque: “A reunião inesperada de elementos era cheia de cor e objetos muito diferentes uns dos outros. Cada elemento tinha uma presença especial. Parecia respirar, radioativa. Bispo fez uma utopia, um sonho”.

A redenção artística de Bispo ajuda a reciclar a imagem romântica do artista louco. A história da arte se faz de mitos. Um dos mais constantes é a demência iluminada. Houve artistas famosos que enlouqueceram. O poeta romântico alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843) apresentou sinais de esquizofrenia, foi internado e passou a escrever poemas herméticos. O músico americano Brian Wilson, fundador da banda The Beach Boys, consegue até hoje equilibrar a esquizofrenia com shows e discos importantes. E o holandês Vincent Van Gogh (1853-1890) pintou telas inovadoras e delirantes antes de se matar. Mas raros loucos conquistaram o respeito. Um deles foi o dramaturgo, ator e diretor francês Antonin Artaud (1896-1948). Internado num hospício, elaborou um estilo de representar, que chamou de “teatro da agressão”. Sua estética influenciou diretores atuais. Artaud procurava manter a lucidez pela atuação. Assim, evitava surtos psicóticos.

A loucura tem seu método, diz Polônio, no drama Hamlet, de William Shakespeare. Para Sigmund Freud, fundador da psicanálise, o artista é aquele que mais se aproxima do inconsciente e dos loucos. Sobre eles, Freud escreveu: “A formação delirante que julgamos ser uma produção patológica é, na verdade, uma tentativa de cura, um processo de reconstrução”.

Bispo buscou reconstruir sua lucidez por meio da atividade manual incessante. Passava as noites a costurar, colar e pintar. Só descansava aos sábados. “Se ele era psicótico ou não, é irrelevante para seu trabalho”, diz Denizart. “A dor e a dificuldade precisam ser elaboradas de alguma maneira, porque, senão, qualquer psicótico seria um artista. Bispo sabia mergulhar no caos e sair dele. Era isso que o permitia criar. Eis a diferença entre ele e outro sujeito com uma grave enfermidade.” No processo criativo, é difícil distinguir razão e inconsciência, diz Gladys Schincariol, discípula de Nise da Silveira e coordenadora do Museu de Imagens do Inconsciente. “O sofrimento psíquico é um estado do ser que a pessoa está vivendo”, afirma Gladys. “Isso não impede que ela seja criativa. Não há como separar a figura de Bispo entre um maluco que viveu enclausurado e o artista admirado no mundo inteiro. A experiência, a vida e o sofrimento interferiram na obra. O ser humano é uma unidade indissolúvel. Se a arte fosse racional, não seria arte.” Mesmo a obra de artistas sãos, como Ivald Granato, foi considerada demente por alguns críticos por causa da imaginação febril no uso das cores e formas. “Bispo foi um louco expressivo”, afirma Granato. “Sem loucura, a arte não tem graça.”

As práticas e teorias das instituições psiquiátricas não curaram Bispo da esquizofrenia paranoide, muito menos revelaram algo sobre seu impulso criador. Os artistas e estudiosos de arte compreenderam melhor o enigma. “A arte que vem da lógica é cálculo, não arte, e não convence ninguém”, afirma Nelson Aguilar. “A arte vem de outra região que não a racionalidade. Todo artista tem consciência disso.” Loucura, normalidade e saúde mental são conceitos históricos. A arte, tão próxima das fantasias impensáveis, sobrevive aos padrões científicos efêmeros e, por isso, tem vida longa. Arte e loucura são irmãs. Bispo do Rosário não foi um artista puro. Mas que artista pode dizer que é?

Fonte: Revista Época


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