segunda-feira, 24 de março de 2014

Um campo de extermínio em Minas Gerais




Daniela Arbex relata como funcionou, por décadas, o hospício Colônia de Barbacena, que foi comparado aos campos nazistas. A legislação implantada em 2001 mudou o atendimento psiquiátrico ali e em todo o País. O livro, resenhado por Retrato do Brasil, ganhou o prêmio de melhor "livro reportagem" da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA)

por Carlos Conte



Na célebre Carta aos médicos-chefes dos manicômios (Escritos de Antonin Artaud, L&PM, 1983), o poeta francês Antonin Artaud (1896-1948), que passou nove anos de sua vida internado em hospitais psiquiátricos, faz uma crítica contundente ao saber médico, legitimado pelas leis e pelos costumes, e às práticas pretensamente terapêuticas às quais foi submetido nos anos de reclusão. Os médicos, diz Artaud, imbuídos da arrogante tarefa de “medir o espírito”, elaboram uma extensa classificação de doenças mentais, mas poucos são os que dão alguma importância para o conteúdo das imagens que figuram nos sonhos de um esquizofrênico. Em vez disso, respondem com a incompreensão. Munidos de seu pretenso saber, e autorizados pela sociedade, os médicos ordenam o confinamento. Escrita há quase um século, a crítica de Artaud mantém-se atual na medida em que os manicômios, infelizmente, ainda são uma realidade em muitos países do mundo (inclusive no Brasil). “Sabe-se que os hospícios”, escreveu Artaud, “longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos fornecem uma mão de obra gratuita e cômoda, onde os suplícios são a regra, e isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra”.

De fato, quando se entra em contato com a história das macroinstituições psiquiátricas brasileiras, como a Colônia do Juqueri (o maior de todos os hospícios, instalado no atual município de Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo, que chegou a ter quase 15 mil internados no final dos anos 1950), ou o Pedro II (o mais antigo, inaugurado em 1852, no Rio de Janeiro), vê-se que a comparação entre manicômio e prisão não soa exagerada. Em ambas as instituições, deposita-se uma minoria com a qual a sociedade não quer conviver. Esses indivíduos, tanto nas prisões quanto nos hospitais, são obrigados a passar meses, ou até anos de sua vida, num espaço fixo, recortado do resto do mundo, onde seus movimentos são minuciosamente controlados por dispositivos de poder que não permitem que nada escape. Nessas “instituições totais”, termo cunhado pelo cientista social Erving Goffman (1922-1982), impera durante as 24 horas do dia uma lógica disciplinar cujo projeto é o controle completo do tempo e do espaço, a ponto de se subtrair do indivíduo que passa pela experiência do confinamento qualquer possibilidade de comando sobre sua própria vida.

Nesse sentido, a história de Antônio Gomes da Silva, internado durante 34 anos no Hospital Colônia de Barbacena (MG), é emblemática. Nas entrevistas realizadas pela jornalista Daniela Arbex, algumas das quais registradas no livro Holocausto brasileiro, nota-se a enorme dificuldade de readaptação enfrentada por pessoas que passaram pela terrível experiência da internação no momento em que voltam a conviver com o restante da sociedade. No caso de Antônio Gomes da Silva, foi quase meio século apartado do mundo, vivendo entre os muros do Colônia. Em 2003, na primeira noite em que passou no seu novo lar, uma das 28 residências terapêuticas mantidas pela prefeitura do município de Barbacena, perguntou: “A que horas as luzes se apagam aqui?”. Como consequência das décadas de institucionalização, ele não sabia que agora tinha autonomia para controlar seus horários, já que dentro do manicômio o tempo do indivíduo é confiscado e regulado pela lógica disciplinar. Nunca conhecera a utilidade de um simples interruptor de luz.

Movimentos pela reforma psiquiátrica em todo o mundo vêm defendendo há décadas a ideia de que o modelo asilar de tratamento para pessoas que sofrem de problemas psíquicos deve ser extinto na medida em que é exercido mais em benefício da sociedade que o aplica, a fim de protegê-la do louco, potencialmente perigoso se for deixado no convívio com os considerados sadios, do que para finalidades terapêuticas. Pior: a segregação desses indivíduos em hospitais psiquiátricos, aliada a uma tecnologia perversa de tratamentos manicomiais, seria responsável pela cronificação de quadros clínicos, além do elevado índice de reinternações.

Esse princípio do isolamento remonta ao nascimento da psiquiatria, no final do século XVIII, época em que a população das principais cidades europeias cresceu vertiginosamente em decorrência da industrialização. O surto migratório acarretou problemas sanitários e sociais, configurando uma ameaça à burguesia recém-chegada ao poder. Às elites, era preciso urgentemente limpar as cidades da legião de marginais, afastando-os do convívio público. Em O que é psiquiatria alternativa (Brasiliense, 1982), o médico Alan Indio Serrano, ao descrever o contexto histórico em que surgiram as primeiras colônias de alienados, afirma que a psiquiatria “não é uma ciência pura nem neutra: é governada pela visão de mundo, mentalidade e ideologia da sociedade que a pratica e a patrocina”. Diante da necessidade de se organizarem essas multidões confusas que acorriam às cidades – populações flutuantes que, aos olhos dos grupos dominantes, não só eram perigosas como também improdutivas –, políticas urbanas são colocadas em prática no sentido de conter e gerir essas “vergonhas sociais”, entre as quais os mendigos e os loucos. Assim surgem as casas de mendicância na Inglaterra, na Rússia, na França, bem como os primeiros asilos para loucos, muitos deles improvisados nos antigos leprosários da Europa, funcionando como agências de controle dessa população desviante.

No Brasil, as macroinstituições psiquiátricas se difundiram no início do século XX. O Colônia de Barbacena foi inaugurado pelo governo do estado de Minas Gerais, com o apoio da Igreja Católica, em 1903, e sua história assemelha-se muito à desses primeiros hospitais europeus. Segundo Daniela, a falta de critérios médicos para as internações foi uma constante na trajetória do Colônia, configurando-o como um local destinado ao depósito de indesejados sociais: alcoólatras, pessoas sem documentos, mendigos, pobres, drogados. Estima-se que 70% dos internados não sofriam de nenhuma doença mental, como Sônia Maria da Costa, rejeitada aos 11 anos pelos pais por fazer molecagem e levada das ruas de Belo Horizonte ao hospício de Barbacena pela polícia mineira. Daniela relata outros casos de pessoas que foram internadas a mando de delegados, por requisições que eles mesmos assinavam. Sônia passou mais de quatro décadas dentro do Colônia, onde conheceu os chamados “métodos modernos” de tratamento difundidos ao longo do século XX: sessões diárias de eletrochoque, as chamadas injeções de “entorta” (neurolépticos, ou antipsicóticos, de efeito sedativo das agitações psicomotoras) e a lobotomia (intervenção cirúrgica no cérebro que consiste na secção das vias que fazem a ligação dos lobos frontais ao tálamo). Sobre a lobotomia, Serrano diz que, além de pouco ajudar no desaparecimento dos sintomas, seus efeitos são desastrosos para a personalidade dos pacientes, transformados em “plácidos-zumbis, mortos-vivos, sem aspirações, imaginação ou respeito próprio”.

De acordo com Geraldo Magela Franco, que foi vigia do Colônia entre 1969 e 1998, o eletrochoque e as medicações de efeito sedativo eram, muitas vezes, aplicados indiscriminadamente, sem prescrição médica, com a finalidade de conter comportamentos agressivos. “A gente aprendia na prática sobre o que fazer, quando ocorria qualquer perturbação”, afirma Franco. “No caso dos remédios, a gente dava quando o doente apresentava algum tipo de alteração. Em situações de epilepsia, aplicávamos uma injeção. Se o cara, às vezes, se exaltava, ficava bravo, a gente dava uma injeção para ele se acalmar”. Segundo relato de Francisca Moreira dos Reis, contratada em 1979 para trabalhar na cozinha do Colônia, a eletroconvulsoterapia (método terapêutico extremamente controverso, embora ainda recomendado por especialistas para tratamento específico de algumas patologias) era aplicada sem nenhum critério médico. Ela testemunhou o uso do eletrochoque durante um curso para candidatos a enfermeiros no hospital: os pacientes, escolhidos aleatoriamente para os testes, eram amarrados na cama e, sem anestesia geral, submetidos às descargas elétricas. Vários pacientes morriam. Em muitas ocasiões, em decorrência do seu uso incontrolado, as sessões de eletrochoque causavam sobrecarga e derrubavam a rede de energia da cidade.

Esses são alguns exemplos da extrema violência praticada por funcionários, médicos e enfermeiros entre os muros dessa instituição, que deve ser lembrada como o local onde foram praticados, com o consentimento do Estado e da sociedade, atentados graves contra os direitos humanos. Foram pelo menos 60 mil mortes, a maior parte delas registrada no período de maior lotação do Colônia, entre 1930 e 1980, quando chegaram a falecer – em decorrência dos maus-tratos, condições precárias de higiene e atendimento, torturas, subnutrição – 16 pacientes por dia. Nos anos 1960, no auge do extermínio, havia cinco mil pessoas para apenas 200 vagas, superlotação que se explica por motivos econômicos: quanto maior o número de leitos, maior o repasse de verbas públicas para a instituição (embora os “leitos”, de fato, tenham sido substituídos por “leitos-capim” naquela década, por sugestão do chefe do Departamento de Assistência Neuropsiquiátrica de Minas Gerais, como solução para o excesso de gente).

Por isso, afirma a jornalista Eliane Brum no prefácio a Holocausto brasileiro, não há exagero na comparação entre a tragédia de Barbacena e o genocídio de judeus durante a II Guerra Mundial. De fato, as imagens que ilustram Holocausto brasileiro, de homens, mulheres e crianças descalços, cabeças raspadas, alguns usando roupas esfarrapadas, outros nus, mortos-vivos convivendo com moscas e urubus à espreita, em pavilhões miseráveis ou pátios onde o esgoto corria a céu aberto, remetem às narrativas de Primo Levi sobre a realidade assustadora dos campos de concentração nazistas. Essas fotos são de autoria do repórter Luiz Alfredo, publicadas originalmente em maio de 1961 em reportagem de cinco páginas da revista O Cruzeiro intitulada “A sucursal do inferno”, uma das primeiras denúncias contra as condições subumanas em que viviam os pacientes dos hospitais psiquiátricos brasileiros. Só 18 anos depois o jornalista Hiram Firmino, do jornal Estado de Minas, conseguiria entrar no Colônia para fazer a série de reportagens intitulada “Os porões da loucura”, revelando alguns dos problemas crônicos da instituição, como a falta de critérios médicos para as internações e o número insuficiente de funcionários (apenas dois para cada 200 pacientes).

O final dos anos 1970 ficou marcado na psiquiatria latino-americana como a “época das denúncias”. No Brasil, além dessas matérias veiculadas em jornais de grande circulação, houve greves, debates e reivindicações, promovidos por trabalhadores da saúde mental, por melhores condições de trabalho e contra a precariedade dos serviços públicos de saúde e a repressão promovida pelo sistema asilar de tratamento. Esse movimento social foi o estopim da luta antimanicomial brasileira, profundamente influenciada pela vinda ao Brasil do psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980), líder do Psiquiatria Democrática, o mais importante movimento pela reforma psiquiátrica, responsável pela extinção dos manicômios na Itália. Dentre os hospitais públicos visitados por Basaglia no ano de 1979, estava o Colônia. Ele ficou estarrecido com o que viu. Suas declarações tiveram grande repercussão na imprensa nacional e estrangeira: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta”.

Em decorrência da Lei 10.216 (sancionada em 2001), criando regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais, o modelo antigo vai sendo gradativamente substituído pelo novo – descentralizado, com uma rede extra-hospitalar de serviços e equipamentos públicos de base comunitária, pela qual os pacientes circulam livremente; as internações, caso sejam necessárias, devem ser feitas em hospitais gerais ou nos Centros de Atenção Psicossocial 24 horas (Caps). Apesar dos avanços representados pela nova legislação, estima-se que ainda haja cerca de 30 mil leitos nos 200 hospitais psiquiátricos restantes no Brasil. Desde 2001, 45 mil foram desativados. O Colônia de Barbacena ainda está em processo de extinção: cerca de 170 pacientes com problemas crônicos, com expectativa de sobrevida de dez anos, continuam internados.


Holocausto brasileiro – vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil
Autora Daniela Arbex
Editora Geração Editorial
Ano 2013
Páginas 256

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