RISCO DE PERCURSO
Sidney do Carmo
Palavra chave: transformação social – contexto histórico
Em 1880 as idéias positivistas de
Auguste Conte disseminavam-se pelo mundo, tanto que no Brasil, criava-se o IAPB
(Igreja e Apostolado Positivista do Brasil), acontecia o Primeiro Congresso
Internacional de surdos, em Milão, divulgando-se a língua de sinais, a
linguagem dos símbolos; tínhamos os rumores do parnasianismo na escrita.
Em cena uma época de fortíssimas teses
e acontecimentos; em cena um cenário de contradições. Nasce o sanitarista e
visionário Ezequiel Caetano Dias, Ezequiel Dias. Numa época em que se
configurava um labirinto de indagações, entre instâncias próprias da revelação
para a ação de um discurso revestido pelo que tem de mais pulsante: a prática
ajuizando o ato. Surge, pois, o gerado, no antagonismo da oferta e da recusa e
são estes ingredientes ímpares que emolduram a personalidade de Ezequiel Dias.
O Brasil como na famosa frase de Euclides da Cunha seria uma
criação da teoria política. Nesta chave, interpretar o Brasil deve obedecer ao
esclarecimento das relações efetivamente existentes entre homens e deles com
seu ambiente natural, mas criá-lo, elaborando instrumentalmente instituições,
pessoas e valores sociais. Devemos nos debruçar sobre a questão de saber quais
são as condições da vida social que determinam, pelo menos em parte, as
diferentes formas e espécies de conhecimentos, quais as condições de
realizações em um mundo que somente é aceito por ele na medida em que sofre a
sua intervenção. Intervir é coisa do corpo! Foi assim que em 1893, no balcão de
uma farmácia no bairro das laranjeiras no Rio de Janeiro, estava um menino de
doze anos, esguio, magro, com olhos negros e brilhantes, que ajudava os
serviços do estabelecimento.
Ezequiel
Dias já iniciara sua aventura alquímica num ambiente onde a teoria e a prática
dialogava numa simbiose que lhe inspirou o desejo de cursar farmácia. Porém,
mais que atenuar os sofrimentos, ao então jovem estudante de farmácia
preocupava a origem da doença, sendo este o motivo de sua dedicação. Num certo
dia de 1899, um visitante trazia ao estudante “o convite de um tal Dr. Oswaldo
Cruz para uma conferência prévia, que, certamente, se seguiria ao emprego, bem
remunerado. Contudo é importante transcrever aquele que foi o primeiro diálogo
profissional entre Oswaldo Cruz e Ezequiel Dias, conforme o livro Ensaios
escrito por Octávio de Magalhães.
“Em que ano está o senhor
- No terceiro.
Tem medo da peste?
- Não. Senhor.
Está disposto a trabalhar tantas horas quantas forem necessárias
para cumprir as suas obrigações, sem dependência de nenhum horário fixo? -
Perfeitamente.
Agora uma última pergunta, a qual ligo muita importância: o senhor conhece alguma cousa de bacteriologia? O moço teve um momento de dúvida:
exercia sobre si o inesperado cargo de auxiliar de um verdadeiro cientista;
além dos proventos que daí lhe adviria; de outro lado, a consciência, que
compelia a dizer a verdade. Optou por esta, deixando-se, porém, cair,
interiormente, numa crise de abatimento moral. - Não, senhor.
“Pois está muito bem; é essa uma das condições exigidas”.
A partir daí torna-se o principal colaborador de Oswaldo Cruz na
luta pela saúde, motivada inicialmente pela ameaça da peste bulbônica, que,
depois de uma longa trajetória pela Europa, havia chegado as Américas.
Na seqüência, aportou em outubro de 1899 a cidade de Santos,
requerendo das autoridades estratégias rápidas de controle desta doença. Criou-se
de imediato em Oswaldo
Cruz , ao constatar que já contava com um colaborador, o
desejo de fundar filiais (laboratórios) nos estados brasileiros, difundindo as doutrinas
científicas de sua escola, o que representava uma necessidade num país assolado
por tantas endemias.
Teve Ezequiel Dias a incumbência de fundar a filial de Manguinhos
nos da primeira década de Belo Horizonte.
Em Minas Gerais, a filial de
manguinhos foi uma espécie de braço das Ciências biológicas no Estado, pois
promovia, como no Rio de Janeiro, reuniões semanais em sua biblioteca para
discutir artigos científicos nacionais e estrangeiros, as quais passaram a
comparecer médicos e professores da cidade, dando origem á faculdade de
medicina, em 1911, e iniciando uma colaboração duradoura que uniu a pesquisa, a
produção e o ensino.”
Isto porque o grupo laureado por Oswaldo Cruz tinha este costume
na capital brasileira, que recebia influência francesa de modos de pensar e
agir, onde este grupo tinha acesso a um importante jornal: La Gazette, que se dedicou a
este tema da medicina social. Só para se ter uma idéia, entre 1848 -1868
surgiram na imprensa francesa cerca de sessenta jornais dedicados ao tema.
Ezequiel Dias teve sua orientação social, ele acreditava na missão
sociológica de sua função para atenuar os sofrimentos dos desvalidos e
desprovidos de informação; E desta forma, conseguiu articulações num tempo de
encontros paradoxais. De um lado, a promessa da modernidade, o surgimento do
cinema e de outro, as epidemias disseminando-se em grande parte a população
brasileira que não tinha acesso sequer ao saneamento básico. Ele mesmo sentia
isto no corpo, e sua ação era a convergência deste “estado”. Advogava em favor
desta causa mesmo doente. Ele mesmo sentia isto no corpo, e sua ação era a
convergência deste “estado”. Vimos em Ezequiel Dias uma figuração apontada por Everardo
Duarte Nunes em seu livro: “Sobre a Sociologia da saúde”- há, contudo uma faceta
importante que precisa ser dita em que o determinismo geográfico e os fatores
culturais correspondem ao estar inserido no espaço, no espaço como curso da história
no dizer de Milton Santos, pois no corpo (aquele corpo doente), a doença altera
o ritmo de vida, já que todos nós vivemos num determinado ritmo, pela cultura e
hábito e, sobretudo naquilo onde estamos inseridos e não se apagam as marcas do
lugar em que estamos. Nossa situação no tempo e no espaço faz a diferença. Ao
diferir, conferimos. A diferença faz-nos falar. Tanto que Ezequiel Dias mesmo
doente organizava em sua casa vários saraus científicos e literários e nestes
brotaram estudos em Minas na discussão sobre o câncer e textos literários de
escritores franceses.
Nestes saraus lia-se com fervor Charles Baudelaire. Em Belo Horizonte, era
rodeado por amigos e admiradores como o memorialista Pedro Nava que comenta:
sua postura era daquele que o olho escuta o silêncio do corpo que fala e uma
dedicação pelo detalhe do detalhe, fruto de suas investigações no laboratório
de microbiologia e leituras simbolistas.
Quando Ezequiel Dias começou a verdadeira independência
científica, ao lado de Oswaldo Cruz, havia um clima em que só se pensava “no
amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”.
Em 1917, escreveu a primeira lição de microbiologia da faculdade
de Medicina de Belo Horizonte, como também, uma conferência: “Um problema
resolvido”, dessa feita sobre o escorpionismo. Referindo-se ao escorpião disse:
“vive muito bem no campo, de preferência entocando-se sob as
pedras onde lhe apraz hibernar demoradamente, impassível, sóbrio, em prolongada
modorra, alheio á movimentação harmoniosa da natureza”.
Em 1918, publica “O Instituto Oswaldo Cruz”, resumo histórico
sobra à casa de Oswaldo Cruz.
Um risco não do ofício
Aquele que foi farmacêutico, médico e pesquisador por pouco seria engenheiro.
Havia feito a promessa para sua irmã de estudar engenharia seguindo exemplos de
seus antepassados. Mas a proximidade familiar, seu pai era médico e o contexto
da época que viveu as relações traçadas, o convívio num cenário entre saúde e a
doença, o clamor de mudanças, fizeram com que tomasse partido pela questão
social. Nãos e cala um gesto conduzido pelo olhar social, não há como apagá-lo,
pois o ato é um ensaio da posse no espaço, função corpórea, articulada como
modelo como reflexo, como um grito. Lukács nos lembra que a consciência vai ao
ponto de declarar que a transformação das idéias em realidades é um pensamento
profundo, muito importante do ponto de vista histórico.
Em Ezequiel Dias o conhecimento é por
fim/foi uma construção do fazer saúde pública neste país que ainda constrói e
firma sua identidade.
Faleceu em 1922, no ano do acontecimento da semana de arte moderna
no Brasil.
Do autor
Historiador, Poeta e artista cênico, Sidney José do Carmo nasceu em Belo Horizonte. Em fins dos anos 80, atuou intensamente no grupo performático
Vírus Mundanus``, encenando autores como os franceses Baudelaire, Rimbaud, Válery,
Lautréamont e os alemães Paul Celam e Georg Trakl, além do norte- americano
Edgar Alan Poe e os brasileiros Murilo Mendes, Drummond, Dantas Mota e Augusto dos
Anjos. Desde o início dos anos 90, vem realizando pesquisas na fronteira
literatura/saúde pública, com suporte da Fundação Ezequiel Dias – Desenvolveu na Escola de Saúde Pública de Minas Gerais o Projeto
Saúde Com Cultura na cidade de Diamantina entre 2002 a 2004. É Articulador do projeto Ciência em Movimento da Funed.
Referências
bibliográficas
Octávio
de Magalhães – Ensaios – 1951.
Passantes da Agonia- publicado na revista mineira
de saúde pública, n.01- junho/2002;
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